domingo, 19 de junho de 2011

Teatro da Cornucópia e o universo dramatúrgico de Jean Genet

De 16 de Junho a 24 de Julho, no Teatro do Bairro Alto, Lisboa, a Cornucópia tem em cena ELA, de Jean Genet, com tradução e encenação de Luis Miguel Cintra e interpretação de Dinis Gomes, Luis Miguel Cintra, Luís Lima Barreto e Ricardo Aibéo.

Depois da apresentação em Madrid, com grande êxito de crítica e público, de Dança da Morte/Dança de la Muerte, a co-produção com a companhia espanhola Nao d’amores estreada o ano passado, o Teatro da Cornucópia prepara novo espectáculo que continua e aprofunda a programação encetada com FIM DE CITAÇÃO, prosseguida com A Cacatua Verde, e que deverá culminar com a apresentação no Outono de A Varanda de Jean Genet.

De certa forma o espectáculo que o Teatro da Cornucópia agora estreou no seu próprio espaço, será uma introdução ao universo dramatúrgico de Jean Genet.

ELA é uma peça em um acto de Jean Genet, escrita em 1955 e, a seu pedido, só editada, depois da sua morte em 1986. ELA é a história de uma fotografia oficial do Papa: um fotógrafo tenta em vão fazer o retrato de não importa que Papa, capaz de corresponder à imagem oficial do Papa. Dir-se-ia que a peça é outra versão da história do retrato de Inocêncio X por Velázquez. Ao que parece Velázquez propôs a esse Papa pintar-lhe o retrato. O Papa, desconfiado, ter-lhe-á pedido uma prova do seu talento. O quadro que convenceu o Sumo Pontífice teria sido um lindíssimo retrato de Juan de Pareja, escravo do pintor. E Velázquez pintou o genial retrato de Inocêncio X hoje na Galeria Doria Pamphili de Roma. Conta-se, no entanto, que a reacção do Papa, apesar de ter gostado do quadro, foi: "troppo vero!" (verdadeiro demais). Bingo! Tocou no coração do problema.
Antes da peça de Genet já o pintor Francis Bacon fizera cerca de 40 variações sobre o quadro de Velázquez. E a peça de Genet torna em teatro a mesma situação com todos os problemas ontológicos que levanta. Fazer um retrato é por definição a criação de uma imagem e implica uma relação com o real. Uma imagem oficial é pura abstracção, e no caso do Papa, a imagem deveria ser puramente espiritual. Ser Papa é deixar de ser Eu e passar a ser só a imagem universal da Igreja Católica. Pouco interessa a pessoa. Velázquez não pintou a imagem do Papa, pintou um homem, a verdade que os seus olhos viram, pintou um corpo.
Genet inventa um Papa que já não deseja ser nenhuma imagem, que já não tem verdade, e que nem a ser corpo tem direito quando em corpo se apresenta diante do fotógrafo. Uma fotografia, mais até que uma pintura, precisa de um modelo. Mas o Papa de Genet, nem sequer é masculino, é "Ela", sua Santidade, uma representação do nada, um exemplo patético da desintegração do ser. Mais que um ataque à Igreja, a peça é um jogo filosófico e quase clownesco de gato e rato entre 3 figuras: um Papa, um Fotógrafo e um guarda da Imagem Pontifícia, o Contínuo do Vaticano, que conhece a Imagem de cor e que tem por função perpetuá-la. É uma peça sobre o corpo e a alma, sobre a representação, sobre os mesmos temas que, a propósito do actor, se levantavam no recente espectáculo da Cornucópia FIM DE CITAÇÃO. Aqui com o humor e a perversa ambiguidade em que Genet é mestre. E antecipa os temas que em A Varanda, que a Cornucópia levará à cena depois do Verão, se ligam a um ponto de vista profundamente político.
Luis Miguel Cintra

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