sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Romulus e o outro


“Muita gente quando vê um deficiente não sabe como tocar-lhe. Decidimos, por isso, começar por nos tocarmos.” Conhecido sobretudo como intérprete das criações da Companhia Paulo Ribeiro, Romulus Neagu apresenta assim o ponto de partida de O Ensaio de um Eros Possível, dueto entre o bailarino romeno e José António Correia, doente com paralisia cerebral. Profundamente interessado num “corpo humano, exposto e frágil”, Neagu tem desenvolvido nos últimos anos projectos na área da dança com grupos específicos, como idosos, imigrantes e pessoas com deficiências. Com A Invisibilidade das Pequenas Percepções, o coreógrafo aprofunda esse trabalho imensamente delicado e corajoso, promovendo agora o encontro no palco de um bailarino profissional, José António Correia, uma jovem proveniente de uma instituição de solidariedade social e o músico Ulrich Mitzlaff. Fruto de um longo trabalho que envolve a Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral e instituições de acolhimento de menores da cidade de Viseu, esta nova criação toma de empréstimo elementos da psicologia e da psicoterapia, fazendo da dança uma transgressiva estratégia terapêutica, mas sobretudo um espaço efectivo – também afectivo – de encontro de corpos e identidades. A par deste díptico, o TeCA exibe um video-documentário que devolverá ao público a intensa experiência de criação de um destes objectos performativos, saudavelmente marginais na esfera da produção coreográfica nacional.


ROMULUS E O OUTRO
Teatro Carlos Alberto
[8 16 Fevereiro 2008]


O Ensaio de um Eros Possível

Concepção, direcção e espaço cénico Romulus Neagu

Vídeo Paulo Américo

Figurinos Paulo Guimarães

Desenho de luz Cristóvão Cunha

Interpretação José António Correia, Romulus Neagu

Produção Companhia Paulo Ribeiro

Colaboração Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral – Núcleo de Viseu

[8 + 9 Fevereiro 2008] sexta-feira e sábado 21:30




A Invisibilidade das Pequenas Percepções – Making of

Video-documentário de Miguel Clara Vasconcelos

Produção executiva Companhia Paulo Ribeiro

[11 Fevereiro 2008] segunda-feira 21:30




A Invisibilidade das Pequenas Percepções

Estreia absoluta

Concepção, direcção e espaço cénico Romulus Neagu

Música (interpretada ao vivo) Ulrich Mitzlaff

Vídeo Paulo Américo

Figurinos Paulo Guimarães

Desenho de luz Cristóvão Cunha

Interpretação Ana Isabel Gomes, José António Correia, Romulus Neagu

Co-produção Teatro Viriato, TNSJ

Colaboração Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral – Núcleo de Viseu, Internato Viseense de Santa Teresinha

[15 + 16 Fevereiro 2008] sexta-feira e sábado 21:30




“Uma pausa para descansar, começar de novo ou esquecer-se de si”

Entrevista com ROMULUS NEAGU.

Por MÓNICA GUERREIRO.



Chegou a Portugal em 1998, para uma residência criativa, e por cá ficou, a convite de Paulo Ribeiro. Habituados a vê-lo como intérprete, poucos conhecem o seu percurso como coreógrafo. Como é que um bailarino clássico virtuoso, premiado, troca os êxitos de Bucareste pela vida calma de Viseu?

Durante muitos anos fui intérprete de dança clássica, trabalhava na Ópera Nacional de Bucareste e fazíamos um repertório de Giselles, Dom Quixotes e Belas Adormecidas. Ao mesmo tempo, também tinha uma pequena liberdade de coreografar, mas eram coisas pouco consistentes, ainda à procura de algo mais desafiante. Na minha evolução dentro das linguagens da dança, a chegada a Viseu mudou muita coisa. Deparo-me com uma comunidade de gente interessada em dançar, em ter aulas, mas sem qualquer treino. E cresceu em mim a necessidade de ir um pouco mais longe enquanto intérprete, na aquisição de uma outra linguagem coreográfica. Interessavam-me aquelas pessoas que tinham imensa apetência pela dança, porque os seus movimentos eram naturais, não eram controlados pela técnica. E eu achava-me cheio de vícios! Interessou-me explorar as possibilidades que esse gesto natural trazia.

A questão adensa-se quando decide trabalhar com pessoas com necessidades especiais. O Romulus foi buscar intérpretes amadores, mas de grupos específicos: idosos, imigrantes, pessoas portadoras de deficiência. Desenvolve aquilo a que se convencionou chamar de “dança na comunidade”…

Na verdade, a minha curiosidade passava por pesquisar outra linguagem coreográfica, outro tipo de fisicalidade, coisas muito diferentes daquilo a que – tantos anos ligado à técnica clássica! – estava habituado a fazer. Como é que se pode trabalhar com pessoas que têm uma limitação física? Como é que se pode extrair dança daqueles corpos? O Ensaio de Um Eros Possível apareceu assim. Não há intenções muito complexas, nem objectivos terapêuticos: apenas um intérprete à procura de uma coisa para desenvolver. E cheguei aí de uma forma pacífica. Comecei por fazer ateliers e workshops, por interagir com as pessoas dessa comunidade. Escolher uma delas para trabalhar comigo foi o passo seguinte. E posso dizer que, de certa forma, estes projectos ajudaram-me também a mim. Apesar de viver cá e falar a língua – estou integrado –, faltava-me conhecer essa outra parte.

Em O Ensaio de Um Eros Possível, a primeira impressão que temos é de um trabalho que contraria a sua natureza de bailarino virtuoso, já que tudo se passa no chão. Não existe a verticalidade que caracteriza a técnica clássica, o que deve ter sido um desafio…

Para mim, estar no chão não é nada natural. Mas para o José António também não. Passa muito tempo na cadeira de rodas, são os pés dele. Passámos por um processo de adaptação ao chão, e a nós próprios naquele contexto. Precisámos de encontrar esse lugar comum e comunicar num território neutro, nem meu nem dele. Descobrimos assim coisas novas, algumas, de certa forma, importadas do contact improvisation, outras das “técnicas de chão”, adaptadas à nossa situação e limitações. Este dueto, muito sensitivo, acabou por prescindir completamente da cadeira de rodas. Foi uma opção clara.

Para A Invisibilidade das Pequenas Percepções foi “recrutada” mais uma intérprete: Ana Isabel, uma estudante de 17 anos, que desde os quatro vive num internato. Um condicionalismo psicossocial, bem diferente da incapacidade física do José António. Nesta peça, a coreografia dos gestos simples revela-se no puxar, afagar, empurrar…

Tanto um como outro são privados de afecto. É essa a sua principal limitação e foi isso que tentei desenvolver como ideia fundamental do projecto. Estas pessoas estão numa viagem e fazem uma pausa para descansar, começar de novo ou esquecer-se de si. E a relação entre elas é de total necessidade: funcionam em conjunto, são um mecanismo, com base no afecto. Estes corpos têm necessidade de estar uns com os outros, de apoiar e ser apoiados. Aqui entra o pormenor do gesto, como motor e promotor do movimento. A intenção, o gesto e o movimento. Sempre na procura do outro.

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