sexta-feira, 14 de março de 2008

A Boba, de Maria Estela Guedes



O Teatro Experimental de Cascais tem em cena até 13 de Abril, no Teatro Mirita Casimiro, em Cascais, A BOBA, de Maria Estela Guedes, dramaturgia de MARIA JOÃO DA ROCHA AFONSO, encenação de CARLOS AVILEZ e interpretação de MARIA VIEIRA .

A BOBA, que estreou em 12 de Março, é a nova produção do Teatro Experimental de Cascais, companhia que iniciou a sua actividade em 1965, tendo desnvolvido, ao longo destes quarenta e três, uma actividade múltipla e variada.


ERRO E VERDADE N’ A BOBA
A Boba tem de momento três edições, todas diferentes, se bem que as variações sejam mínimas: a electrónica, no TriploV (www.triplov.org); a da Apenas Livros Editora (A Boba, Lisboa, 2006) e da Escrituras Editora (Tríptico a Solo, São Paulo, 2007). E existe ainda o guião da peça que está a ser montada pelo Teatro Experimental de Cascais.

Qual a verdadeira Boba? – seria caso de perguntar. Algumas variantes podem implicar erros ou gralhas involuntários. O erro não deve ser interpelado quanto à sua verdade, pois não existe nele intenção de deturpar factos. Por exemplo, na edição da Escrituras escapou um erro: por duas vezes se diz qual dos conselheiros de Afonso IV avisou D. Pedro de que havia deliberação de matar D. Inês. De uma das vezes saiu o nome de outro dos nobres que mais tarde D. Pedro mandou executar. Ora nem eu nem a Boba sabemos se é verdade que alguém avisou repetidamente que D. Inês ia ser assassinada. O que sabemos é que a História declara que foi Diogo Lopes Pacheco quem o fez. Uma coisa é o que está escrito e outra o que aconteceu. Sem desprimor para Fernão Lopes, nada garante que tenham de facto acontecido os factos que ele regista na Crónica de D. Pedro I, minha principal fonte historiográfi ca. Ele nem sequer é contemporâneo do que narra. Eu acredito na probidade do velho cronista, porém quem garante que sejam fi dedignas as suas fontes?

Nesta questão da verdade, só posso garantir que A Boba é uma fi cção construída a partir de informações da História e da Literatura no seu lado inesiano. No lado “A Bela e o Monstro”, conta a informação oriunda sobretudo dos teratologistas da primeira metade do século XX, como Pires de Lima, Themido, Lombroso e Barbosa Sueiro. Os anões como Maria Miguéis, a Boba, eram casos habitualmente estudados por estes cientistas.

Maria Miguéis relata e comenta episódios da vida e morte de D. Pedro I e de D. Inês de Castro.

Existe, naturalmente, um fundo de vivido na peça, que eu diria ser o meu: a minha experiência de vida e a minha experiência de leitura. Quanto à informação, a percentagem de obras historiográficas consultadas sobre o assunto foi ínfi ma, em comparação com as literárias. Só uma obra de História me acode à lembrança, a Crónica de D. Pedro I. Obras literárias que se inspiraram no tema são às centenas, em Portugal e no estrangeiro, em todas as épocas, disso sendo espelho a minha peça.

Vem este assunto a propósito dos ensaios, pois acontece às vezes fazerem-me perguntas às quais dou resposta fora do enquadramento dramático, e só mais tarde reparo nisso.

- Então a cena do bispo do Porto está no Fernão Lopes?! Se está, é porque é verdade...

- Ah, sim, é verdade! - assevero.

Não, querida Maria Vieira, nenhuma de nós deve fazer confusões, é perigoso sacralizarmos a palavra, só por estar impressa. Agustina Bessa-Luís, que leu tudo ou quase sobre Pedro e Inês, declara que “A História é uma fi cção controlada”. Salvo as invenções da nossa imaginação criadora, que, no caso, a bem dizer se limitam à construção de uma personagem e seu discurso, todas as informações prestadas na peça têm origem na palavra impressa. Mas eu, pessoalmente, nem estabeleço grandes distinções de valor entre a informação histórica e a romanesca. Tanto vale Fernão Lopes como Agustina, António Cândido Franco, Herberto Helder ou Bocage. Aliás, predomina até na comédia uma visão agustiniana da tragédia. A Boba mostra que a história de Pedro e Inês não foi construída pelos historiadores, sim pelos escritores. A sua verdade é poética, e por isso sobrevive.
Maria Estela Guedes - Fevereiro de 2008



MAS… NÃO A TINHAM ASSASSINADO?
Afirmam que sim. Mas a verdade é que, 653 anos após a, sabemo-lo hoje, fictícia data da morte da dama galega, a morta mais viva da cultura portuguesa regressa ao nosso convívio em mais uma renovada perspectiva.

A história de Inês já foi contada e recontada de muitas e variadas formas: do ponto de vista de D. Pedro, de D. Constança, de Afonso IV, de servos e criados, de Afonso Madeira, de Pêro Coelho...

Inês vive ainda na poesia, na ópera, no cinema, na prosa, na escultura, na pintura, no teatro, mais viva que morta, actuante e de ímpar importância na lusa forma de amar.

“A História é uma fi cção controlada”. Será? Ou será que a lenda tomou há muito o lugar da História na forma como nos faz chegar os ‘factos’ que envolveram a Colo de Garça?

Diz-nos a História, pela pena do Conde de Sabugosa em História Genealógica, que D. Beatriz mandou “a Maria Miguéis anã, trezentas livras” em testamento. E é essa boba, essa fi gura menor em vários sentidos que Estela Guedes escolhe alcandorar à posição de, mais do que protagonista, motor de uma história que todos afirmamos conhecer. Conhecemos?

A fi gura desprezada e socialmente insignifi cante “também tem direito à História”, proclama a certo momento. À que viveu, à que afi rma ter decidido. Foi ela, a pessoa usada por todos qual objecto de uma domesticidade quotidiana, que se deixa em testamento aos fi lhos, quem puxou, afi rma, os cordéis de um assassinato que marcaria até hoje a face da cultura portuguesa.

Percorrendo tempos e vozes, atravessando perspectivas várias, a Miguéis – pois assim se chama - apresenta-se perante os nossos olhos para repor a inesperada verdade de um feito que todos pretendemos conhecer tão bem.

Dominando um espaço que a outros pertence, a um tempo visível aos nossos olhos e invisível aos dos seus contemporâneos, a margem de manobra e capacidade de manipulação de que afi rma gozar revelam-se muito para além do que estaríamos à espera. Minúscula num mundo gigantesco, vivendo perto dos grandes com a função de os entreter e a quem é permitida uma liberdade de expressão imperdoável noutros casos, é a um tempo espelho e agente de acções cuja responsabilidade a outros pertence. Sem nunca fazer concessões, goza do privilégio – que o estatuto de louca/boba tristemente concede – de lhe ser permitido colocar a verdade à frente dos olhos de (quase) todos, mantendo-se apartada dela: “Não sou igual a vós, não reproduzo os vossos valores.

”O ser repelente e usado é também senhora de emoções que revela: crítica em extremo perante o poder, revela uma afeição sincera pelas suas três senhoras – Beatriz, Inês e Teresa Lourenço – que a tomaram por companheira. É com lucidez que olha para os bastidores do poder, uma vez que lhes conhece as fraquezas e os podres. Com a mesma lucidez analisa-se e expõe-se aos nossos olhos no que tem de mais ridículo. Inveja e ciúme das três mulheres junto de quem viveu? De Inês provavelmente, sim. Mas não é com amargura que Miguéis fala dela: é com carinho, com pena, com uma atitude calorosa que encontra na recordação dos dias felizes da Atouguia a expressão mais clara.

Pessoa levada ao limite da sua resistência pelo pouco caso que dela fazem, Miguéis vem reivindicar o seu lugar na História. O lugar que lhe pertence, afi rma. E reduzir à sua insignifi cância de joguetes da Fortuna os grandes que, a seu tempo, julgaram dominar o mundo: “Dou-vos gozo com o punhal da língua…”Fiquemos então com a Miguéis que, vinda do caixote da reciclagem, se senta, senhora e dona, no ponto de controlo de toda a situação, antes de voltar ao nada de que veio.
Maria João da Rocha Afonso - Fevereiro de 2008


A Boba
dramaturgia MARIA JOÃO DA ROCHA AFONSO
encenação CARLOS AVILEZ
cenários e figurinos FERNANDO ALVAREZ
coreografia NATACHA TCHITCHEROVA
apoio vocal LUCÍLIA SÃO LOURENÇO

1 comentário:

A Bruxa das PAPs disse...

Gostaria de deixar aqui o testemunho da minha admiração pelo fantástico trabalho da Maria Vieira. A sua atitude, empenho e profissionalismo foi uma lição para todos nós, ao longo do período de ensaios. Tive oportunidade de conhecer de perto uma grande senhora e é com o maior carinho que lhe deixo aqui um grande abraço.
M. João Afonso